segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Paixão(II)

A imagem daquele anjo não me saia da cabeça. Adormecia a pensar nela e acorda com a imagem dela a abrir-me a porta.
Rapidamente comecei a reconhecer os seus paços quando descia as escadas, a sua voz no meio da rua. Mesmo a meio da manhã, no meio pregões das varinas, no barulho das crianças, eu sentia o seu andar, o seu respirar. Algumas vezes falhava, alguém conseguia imitar o andar dela, a sua voz, a sua maneira de descer as escadas. Mas noutras vezes acertava. E ela lá estava.
Ela costumava sair com a avó nas suas compras diárias. Alfama é um bairro muito único. Era normal as pessoas fazerem as compras para o próprio dia. Existiam talhos que abriam de terça a sábado às seis da manhã, fechavam às 16 horas.
Um dos mais conhecidos era o talho do Sr. António – Ti’António para mim. E ele nunca foi meu familiar. É apenas uma das formas de tratar as pessoas por quem tenho grande apreço e respeito. Assim, não se trata essas pessoas num distante “Senhor” ou “Senhora” mas num próximo Tio ou Tia. Dessa maneira quer o sujeito quer o destinatário sabia que aquela relação era especial.
Quanto ao peixe a variedade era imensa. Na rua de S. Pedro existiam, pelo menos 15 varinas que vendiam o seu peixe de terça a sábado. A Rua de S. Pedro era também denominada de Rua do Peixe. O cheiro do peixe tinha-se entranhado nas pedras da calçada. Apesar dos serviços da Câmara Municipal de Lisboa lavarem a rua diariamente logo após as varinas encerrarem o seu negócio às 15 horas. Mas o bairro cheirava a peixe, o bairro cheirava a mar. Mas não digo isto como critica ou como sinal depreciativo. Foi o Mar, ou a baia calma, designação fenícia que originou a palavra Lisboa, que fez que o povo tenha escolhido Alfama para viver. Há sua frente tinha uma fonte de alimento e dentro do bairro tinha muitas nascentes de água. Assim, tínhamos tudo o que era preciso para um povo se sedentarizar. Não faltava água nem comida.
Saudades de algo que já não volta.
Era normal a D. Manuela vir à rua fazer as suas compras diárias, agora na companhia daquele anjo.
- Olá Carla, como estás?
- Bem e tu?
Depois vinha a conversa do tempo e ficava sem nada para falar. Na realidade eu não precisava de conversa. Só de a ter ao alcance da minha vista.
Dificilmente eu conseguia ter a Carla na rua. Era uma rapariga de casa, não gostava de estar na rua – Não era de Alfama, onde para nós a rua é mais uma assoalhada da casa.
É normal encontrar as portas das casas abertas. Tal situação é devido a uma razão sócio-arquitéctonica ou arquitectónico-sociológica. As casas em Alfama são muito pequenas e com pouca iluminação. Muitas vezes têm divisões interiores e apenas uma ou duas janelas. Deste modo é normal encontrarmos portas de entrada com janelas e portas abertas. Tal situação vem minorar as duas características dos imóveis em Alfama. Com a porta aberta entra mais iluminação natural para dentro de casa e, por outro lado têm-se a impressão que a casa é maior. Como se a casa se alargasse para a rua e para dentro da casa dos vizinho que têm igualmente a porta aberta.
Talvez por esta arquitectura, pelas pessoas ou pela história. Não podemos esquecer que a arquitectura é de origem árabe onde a introspecção familiar e social é rainha onde as casas são constituídas de acordo com a cultura muito particular. Existe em Alfama uma sociedade diferente do resto da cidade. Todas as pessoas do bairro se conhecem. As notícias correm muito depressa. E, por isso, existe entre os habitantes do bairro uma mistura de Amor e Ódio Familiar. As pessoas adoram-se, mas muitas vezes por questões sem a mínima importância, deixam de se falar, chegando a existir confrontos físicos.
Sendo um bairro tão característico tais individualidades do bairro são visíveis durante os meses quentes e pelo frio são mais dificilmente detectáveis no verão.
Mas finalmente chegou o verão.
No verão as ruas do bairro fervilham de vida. As casas passam a ser moradas para comer e para dormir e as ruas como grandes salas de estar. Como se o bairro fosse uma grande casa, como dizia Ary dos Santos, “um casa sem janelas”. Muitas vezes as pessoas de pisos superiores como não pretendem sair e ter de descer as escadas ficam a janela ou nas pequenas varandas. E era nessa sua varanda que a Carla passava grande parte do tempo. Ela adorava ler e de estar sentada de costas viradas para a rua. Na realidade de costas viradas para o bairro. Como se ele não fosse importante para ela. Vivia fechada no seu mundo onde tudo o resto fosse supérfluo. Nunca ele iria perceber mas é esse o espírito reinante em Alfama. O individualismo, considerando tudo o resto supérfluo. Com uma pequena diferença. O bairro considerava isso não para os seus habitantes mas para os visitantes, considerava supérfluo o resto que não fosse de Alfama. Era apenas um pormenor, mas aquele anjo tinha o espírito de Alfama.
Mas o facto de a ver permitia-me ser um pouco mais feliz e fazia-me ganhar coragem para pedir para ela descer. Certo dia, estava a Carla na varanda e a D. Manuela na janela das escadas com a vizinha do lado. Pensei – Porque não?
- D. Manuela a Carla pode descer?
- Pode, se ela quiser.
Vi um pequeno sorriso na cara da Carla.
- Mas vou descer para quê? - Perguntou a Carla.
-É difícil falar com alguém que está a dois andares a cima. Anda, podemos ir dar uma volta ao bairro.
- Eu conheço o bairro. Não me perco - Respondeu a Carla. Mas apesar da resposta negativa vi um leve esgar no seu rosto a solicitar que eu insistisse. Na realidade, talvez não tenha visto nada pois eu sem óculos vejo mal à distância e nessa altura tinha a mania de não os usar para não parecer feio.
Após alguma insistência e tendo a D. Manuela do meu lado, a Carla desceu. Andámos a passear a tarde toda. Foi uma tarde perfeita, estava a passear em Alfama com a mais bonita mulher que alguma vez tinha visto e, desta vez, ela estava a passear comigo. Pois na minha imaginação já tinha feito aquele passeio com ela, Mas hoje é real.
Tornámo-nos bons amigos e para mim era a mulher da minha vida. Quase todos os dias nós estávamos juntos.
No entanto, ela nada sabia ou desconfiava da minha paixão. Parece que é verdade. Segundo o povo em questões de Amor o visado, neste caso a visada, é sempre a ultima a saber. Via-me como um amigo que podia ter num bairro completamente estranho. Eu sonhava no dia em que pela primeira vez ia dizer a alguém que gostava dela, que queria que fosse minha namorada. Em que pudesse terminar a minha historia amorosa com o famoso “e viveram felizes para sempre”.
Não era a primeira vez que eu gostava de uma rapariga, mas sempre fui muito cobarde e nunca tive coragem de dizer nada. Já tinha beijado raparigas, mas nunca nenhuma que eu gostasse realmente. Parecia difícil fazer com alguém de quem nós gostamos mesmo. Era mais fácil com as outras. Se não lhe ligavas muito ias mais descontraído. Não te preocupavas que algo corresse mal. E, por isso não corria mal. Mas agora era diferente. Eu estava apaixonado por ela. Eu pensava nela todos os minutos, eu respirava, comia e bebia-a nos meus pensamentos. Eu tinha de dizer o que sentia por ela e tinha de saber se ela sentia o mesmo por mim. E o pior é que ela podia dizer que sentia o mesmo por mim e ai vinha o grande problema. E se eu a beijasse mal? E se eu não fosse tão bom namorado como amigo? E se…
Era esse o meu problema. Mas eu estava cada vez mais apaixonado por ela.
Este sentimento aumentava exponencialmente cada dia que passava. Eu tinha de dizer o que passava na minha cabeça. E naquele dia não podia passar. As palavras tinham sido exaustivamente treinadas. Na minha cabeça fui alterando e melhorando o discurso. Ele não podia falhar. O discurso cuidadosamente aperfeiçoado, algumas vezes com palavras tiradas do dicionário, estava pronto.
Após ter ajudado o meu pai (ele tem um restaurante), esperava ouvir os passos da rapariga que eu queria para o resto da vida. Não conseguia ouvir, ou não desceu ou passou numa altura em que o barulho dentro do restaurante era tão grande que nem os meus apaixonados sentidos conseguiam ouvir. Nem das inúmeras vezes que vim à porta pelos supostos passo Vim à porta e olhei para a janela. Ela estava na janela das escadas. Eu decidi – Era agora:
- Olá !
- Olá, Helder.
- Posso falar contigo?
- Podemos falar daqui a um bocadinho.
- Tem de ser agora.
- OK, eu desço.
- Não, eu subo.
Achei que teria mais privacidade falar nas escadas do prédio do que nomeio da rua onde as paredes têm mais do que ouvidos. As ruas de Alfama não permitem que ninguém tenha uma conversa particular.
Subi as escadas num ápice e cheguei num instante ao pé do objecto da minha paixão.
- Entra Helder, para falarmos.
- Não, quero falar contigo aqui fora.
- Diz.
- Já nos conhecemos há algum tempo e desde que te vi pela primeira vez tenho um sentimento que com passar do tempo não desapareceu mas cresceu. Eu, desde o primeiro dia que te vi, gosto de ti. És uma mulher bonita e conhecer-te fez-me agradecer que o Zé Carlos tivesse sido atropelado. Não que ele merecesse, mas assim pude conhecer-te. E pude estar contigo e conhecer-te e ver que és a melhor coisa que podia ter acontecido na minha vida. E por isso gosto de ti e queria namorar contigo…
- Helder, eu gosto de ti como amigo. Se eu pudesse escolher, escolhia-te a ti. Mas no Amor não se escolhe. É o coração que escolhe. Por isso peço desculpa, mas não vou aceitar.
- Não faz mal – disse – mas eu tinha de dizer.
Desci as escadas. O meu plano tinha falhado redondamente. O texto que tinha criado não saiu. Nem uma palavra. Tudo aquilo porque tinha treinado foi-se no meio do nervosismo. E ela respondeu que não. O não que eu, no meio do meu medo, esperava mas que não queria.No entanto, não estava chateado, mas contente. Não estava triste, mas feliz. Não estava desapontado mas satisfeito. Tinha dito a alguém que gostava o que sentia. Tinha colocado, mal, mas tinha colocado em palavras o que sentia. E a partir desse dia não precisava de disfarçar perante ela. Sentia-me pela primeira vez um homem. Tinha, pela primeira, vez algo que sempre me pareceu de adulto. Dizer a quem amamos que a amamos.

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